quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Ser de outro sertão – uma crônica paraibana



Em tempos globalizados, o meu sertão praticamente deixou de ser sertão. Das coisas que lá vivi na infância, muitas não existem mais. Lembro, nos períodos de estiagem, das torneiras anunciando, com um som metálico e descontinuo, a falta d’água. Era tempo de espera pela chuva ou pelo alento dos carros-pipa. Surgia um destes carros e logo se formavam filas de braços amarrados a latas d’água, todas sedentas.

E quando o céu começava a se anuviar, era uma ansiedade só. Diziam que a chuva já passava por Pedra Branca logo chegaria a Itaporanga, nossa cidade. Lá, tempo bom é tempo fechado. Mas isso não acontece como cá, onde as nuvens surgem num instante e se desmancham numa pressa danada. No sertão, as nuvens se ajuntam aos poucos, apontando o olho do povo para o céu. As vezes, traiçoeiras, vão embora, deixando o sertanejo desolado. Outras vezes, em atendimento às preces a São José, elas se precipitam. Então, é uma alegria só. Para a meninada, é a chance de correr entre as biqueiras das casas e de brincar de barquinho na água que escorre. Para os adultos, significa a certeza da colheita farta, do milho, da macaxeira, do jerimum e do feijão verde esparramados ao chão na feira livre dos sábados.

Mas os tempos mudaram. Novos açudes deram mais segurança para o sertanejo plantar, e, como a estrada entre o sítio e a cidade parece ter encurtado de tamanho, a feira livre agora é diária. Os jumentos, que antes carregavam o agricultor à feira, foram substituídos pelas motos e já não ficam mais amarrados nas árvores e postes da minha cidade. Foi-se o tempo também da venda dos colchões de palha, da presença dos cantadores populares, dos poetas de cordel e dos vendedores de pomadas milagreiras, que curam da frieira ao câncer. Na feira, ainda tem candeeiro de zinco, arreio de cavalo e fumo de rolo para vender, mas dividindo espaço com CDs e DVDs piratas.

Outra recordação marcante é a da procissão de romeiros de Padre Cícero, todo dia 20 do mês, relembrando a morte do santo consagrado pelo povo. Eu adorava ver os fogos espocando no céu e as fiéis, de luto fechado e vela na mão, saudando seu santo a gritos de “viva meu Padim Pade Ciço”. A procissão não acontece desde a morte de seu organizador, Zé dos Retalhos, um comerciante (lógico, do ramo de tecidos), que também ergueu uma estátua para o santo popular. No local, eram depositadas cabeças, pés, braços e toda sorte de esculturas em madeira, em agradecimento às graças alcançadas. A Igreja, que jamais deu atenção aos romeiros, preferiu erguer uma réplica do Cristo Redentor no alto da serra, um cartão postal que nunca atraiu turistas nem peregrinos.

Apesar do tom saudosista, fico contente em saber que muitas coisas mudaram, afinal fazem 17 anos que saí de lá. Não quero meu sertão árido em palavras e emoções, como aquele descrito por Graciliano Ramos em Vidas Secas. Não quero que meu sertão seja “uma espera enorme”, como é o de Guimarães Rosa. Quero-o falante, cheio de lendas e estórias, igual ao sertão de Ariano Suassuna.

Quero ver a alegria da colheita, a meninada correndo no meio da rua, mas também as indústrias têxteis se instalando, com a perspectiva da chegada de universidades e agências bancárias, dando mais assunto às mulheres conversadeiras da calçada. Quero ver minha cidade ir além, cobrindo o descampado da caatinga. E quando alguém “deixar o seu Cariri no último pau-de-arara”, que seja por opção e nunca por necessidade.

Publicado em: www.jornaldotocantins.com.br
Junho/2007

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