quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

As armas de um João



Num sertão de muitos joãos, havia mais um. Mais um João torturado pela pobreza, pela rispidez daquela terra e daquela gente. Uma gente bruta, que não tem quase nada e que o pouco que tem não valoriza. Nem a vida.

Por um motivo torpe, mataram um dos dois irmãos do João. Segundo a ordem sertaneja, ele tinha que honrar sua família com o sangue do novo inimigo, levando a mesma dor que sentia aos entes do algoz de seu irmão. Num ciclo de vinganças, uma rixa se firmava. Dali nasciam emboscadas, seqüências de fugas pelo mato e o temor de ser ou de fazer de um dos seus a próxima vítima daquela sina, que vez por outra tingia de vermelho a terra seca.

João não tinha muitos familiares. A bem da verdade, restava a ele resguardar com maior tino apenas sua própria vida e a do outro irmão que lhe restara. Logo ele, um homem pacato, um jovem simples do mato, teve que se afeiçoar às armas, fazendo-se delas eternas companheiras. Não restava a João outro destino, senão o de também ser um bruto.

Um dia, João encontrou uma bela e jovem Maria. Casou, teve filhos, batalhou, livrou-se da miséria, mas seu coração nunca se amansou. A constante ameaça de ser caça e de ter que se fazer caçador o perseguia, em meio ao casarão que construiu e à coleção de armas que pôde comprar.

O sangue inimigo derramado nunca aliviou a dor de perder tão injustamente o irmão, que era um homem popular na pequena cidade pela postura altiva e por sua bondade sem tamanho.
A família que João formara parecia não suprir tamanha perda. O negror do passado o fazia ignorar o conforto de agora. A necessidade de atormentar-se fazia com que João repelisse sua bela e amada Maria, a quem, por muitas vezes, tratava com a mesma rispidez dispensada aos seus inimigos. E ela se afastou para jamais voltar.

Passados os anos, já velho e sozinho, João se manteve atormentado. Quando não estava bebendo suas agonias, o tempo todo resmungava algo para si mesmo, acomodado em sua inseparável cadeira de balanço. Talvez remoesse baixinho sobre suas lembranças amargas, talvez repetisse algo sobre a necessidade de manter-se em guarda, ante uma rixa que esmaecia mas que, ainda, não tinha ainda definhado por completo.

João passou seus últimos anos fechado em si mesmo. Muito longe de sua Maria, longe até de seu outro irmão. Em sua cadeira de balanço, à calçada, viu a paisagem do sertão mudar, na esteira dos primeiros ares do progresso. Aos poucos, os joãos daquela cidade foram ganhando novas perspectivas, deixando de ser brutos e aprendendo a valorizar a vida.

Publicado em www.jornaldotocantins.com.br

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