quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Raimunda, quebrando limites



Do primeiro raio de sol ao cair da noite, muita coisa acontece na vida de uma quebradeira de coco babaçu. Mas foi neste curto espaço de tempo, entre uma alvorada e o entardecer, que o cineasta Marcelo Silva conseguiu relatar não somente as dificuldades cotidianas destas mulheres, mas também a trajetória da líder sindical Raimunda Gomes da Silva, personagem central do vídeodocumentário Raimunda, a quebradeira, representante do Tocantins na 3ª edição do DocTV, que será lançado oficialmente no próximo dia 13, na capital Palmas.

Para quem não sabe, Dona Raimunda, como é conhecida, viajou continentes representando a causa das mulheres extrativistas. Por seu histórico, ela recebeu muitas homenagens - uma delas prestada pelo Senado Federal - e integrou a lista de mil mulheres, de todo o mundo, concorrentes ao prêmio Nobel da Paz de 2005.

Hoje, Dona Raimunda é aposentada. Vive modestamente, mas com certo conforto, no município de São Miguel do Tocantins, na mesma região isolada onde trabalhou, chamada de Bico do Papagaio, divisa com o Maranhão. Ela ganhou manchetes, foi ao Canadá, França, China e Estados Unidos, mas, de maneira contraditória, algumas quebradeiras de coco desconhecem quem seja ela.

E o mérito de Raimunda, a quebradeira é mostrar, de modo subjetivo, a causa deste anonimato da líder sindical entre algumas das quebradeiras que estão na ativa.

O vídeo não se limita à trajetória de Dona Raimunda, muito menos ao reconhecimento alcançado por ela, se livrando das amarras de uma videobiografia tradicional.

Enquanto narradora do documentário, Dona Raimunda relembra o tempo em que percorria babaçuais, coletando e quebrando coco. Ilustrando seu relato, o vídeo mostra como é, atualmente, um dia de trabalho de quebradeiras que vivem isoladas, entre os pequenos povoados e as matas que lhes servem como local de trabalho.

Para este grupo de mulheres - raimundas anônimas -, não existe acesso à informação, consciência política nem organização sindical. O dia passa rápido e tem que ser dedicado inteiramente ao trabalho, caso contrário elas não conseguirão comprar o pouco de farinha e café que lhes serve de alimento. Neste contexto, não é de se estranhar que estas trabalhadoras, privadas de muita coisa – inclusive de conhecimento -, nunca ouviram falar da líder sindical que deu visibilidade à sua causa.

Além da crueza do trabalho das quebradeiras, o vídeodocumentário de Marcelo Silva ensaia uma discussão sobre os sangrentos conflitos agrários na região do Bico do Papagaio. Neste momento, o ponto emocional é a declamação, pelo músico Zeca Baleiro, do poema A morte anunciada de Josimo Tavares *, de Pedro Tierra.

Seguindo a mesma linha, Silva anuncia que seu próximo documentário será sobre o homem que pode ser considerado o primeiro ecologista do Tocantins, o promotor de Justiça Leônidas Duarte, que expulsou madeireiras multinacionais do Bico do Papagaio, na década de 1940. A intenção do cineasta é dar visibilidade a um idealista que, também, não alcançou o reconhecimento local merecido.

* Amigo de Dona Raimunda, Josimo Moraes Tavares era padre. Ativista, ligado à Teologia da Libertação, ele foi assassinado em maio de 1986, quando subia as escadas que levavam à secretaria da Comissão Pastoral da Terra em Imperatriz (MA). Foi percorrendo o Brasil para denunciar a morte de Josimo e os conflitos agrários da região que Raimunda começou a ganhar notoriedade.

NA FRANÇA E ESTADOS UNIDOS

Seguindo a trilha da própria personagem título, em março, o documentário se torna alvo de olhares estrangeiros. Serão expostas no Museu de Arte Moderna da cidade de Marselha, dia 7, e no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, dia 18, as fotos do francês Rodolph Hamadi, captadas no período de filmagens do documentário, retratando o cotidiano das quebradeiras.

Na seqüência, no dia 30, a exposição segue para Nova Iorque, onde será exposta no Liceu de Arts, uma escola francesa tradicional. Em cada cidade, ocorre simultaneamente a exibição do filme. Em duas exposições, serão realizados leilões das fotos para arrecadar fundo para as quebradeiras. Em meio a uma programação extensa, haverá, em Marselia, um jantar também em prol das trabalhadoras.

Marcelo Silva acredita que, além destes benefícios pontuais, outros poderão surgir com a sensibilização do público europeu e norte-americano. “Já está acontecendo, mas não estamos anunciando nenhum benefício porque estamos aguardando as confirmações”, adianta ele.

QUEM SÃO AS QUEBRADEIRAS

Nos estados do Maranhão, Tocantins, Pará e Piauí, estima-se que um contingente de quase 300 mil mulheres vive de coletar o coco babaçu, nativo da região. De sua amêndoa, extraem o óleo vegetal, com o qual cozinham e produzem sabão. Da casca do coco, fazem lenha; da palha da árvore, cestos. Nada se perde.

Mas elas só utilizam para si o excedente da produção. O trabalho de coleta e quebra do coco é árduo e penoso, senão pouca será a amêndoa comercializada no final do dia. Para alcançar resultados, elas se juntam em grupo ainda na madrugada e adentram matas e fazendas. A mão-de-obra infantil se faz bem vinda.

Sentadas embaixo das palmeiras de babaçu, com um machado entre as pernas, apóiam o coco sobre a lâmina e batem nele com um porrete. O movimento é preciso e se repete automaticamente até o cair do dia.

Para continuar tendo acesso aos babaçuais, mulheres como Dona Raimunda lutam pela aprovação da Lei do Babaçu Livre. Quando conseguirem, nenhuma cerca farpada, em nenhuma fazenda, poderá ser empecilho para o seu ganha-pão.

QUEM É DONA RAIMUNDA

Dona Raimunda, 66 anos, é uma mulher baixinha e corpulenta, de traços fortes. Com um linguajar simples, ela mescla temas cotidianos e toca em feridas sociais em seus discursos, esteja em comunidades agrícolas ou palácios de Governo, sem perder o tom diplomático. Nunca estudou, mas é uma líder nata, de visão política apurada.

Nasceu em Novo Jardim (MA), filha de agricultores pobres, em uma família de 10 irmãos. Casou-se aos 18 anos, mas, em meio a uma relação difícil, decidiu abandonar o marido 14 anos depois e criar sozinha os seis filhos, trabalhando como lavradora. Na sua constante migração à procura de serviço, chegou ao Bico do Papagaio, região desasistida ordem moravam 52 famílias. Para levar trabalho comunitário à região e proteger os moradores das ameaças de grileiros, começou a mobilizar a criação de sindicatos rurais.

Em sua trajetória, foi responsável pela Secretaria da Mulher Trabalhadora Rural Extrativista do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e uma das fundadoras da Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (Asmubip).

Hoje, Raimunda está em seu segundo casamento, com o também aposentado Antonio Cipriano, e adotou seu sétimo filho, Moisés, órfão de um líder sindical assassinado na década de 1990.

Publicado em: http://www.ogirassol.com.br e www.overmundo.com.br
Março de 2007

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