quarta-feira, 11 de março de 2009

Faltou sensibilidade à igreja



Mais uma vez, a igreja católica errou, colocando seus dogmas acima dos valores da piedade, compaixão e solidariedade. Errou sim, expondo seus ranços e indo na contramão de valores que estão na base do próprio cristianismo. Agiu de forma tão intolerante, perseguidora e ilógica quanto nos tempos da inquisição.

Poucos imaginariam que a igreja excomungaria uma mulher por ela permitir que a filha, de nove anos de idade, abortasse fetos gêmeos gerados a partir do abuso sexual praticado pelo padrasto. Pior, achando isso pouco, que a igreja estenderia a excomunhão também à equipe médica que livrou a menina de uma gravidez de alto risco. E, como a cereja que ornamenta o topo desse bolo de insensibilidade, poucos imaginariam que, excomungando mãe e médicos, a igreja livraria o padrasto da mesma penalidade, hierarquizando que o pecado de anos submetendo uma criança a torturas sexuais é inferior ao pecado do aborto.

Critico a igreja não por julgar que a excomunhão faça alguma diferença na vida da mãe da garota e dos médicos. Afinal, levada agora, junto à filha, para um abrigo público e sabendo dos anos de abusos praticados dentro de sua própria casa, essa mulher tem dramas psicológicos e sociais mais graves para ocupar seu tempo. O mesmo vale para a equipe médica que, ciente de seu papel, já afirmou que faria tudo de novo, independente da reprovação católica. Critico a igreja por, ao invés de estender a mão à vítima, condená-la com sua penalidade mais extrema – ou seja, a expulsão da vivência religiosa.

Neste episódio, a igreja católica importou-se apenas em reafirmar seus princípios seculares. Importou-se apenas consigo mesma, enquanto instituição, ignorando alguém quem sofre, ignorando alguém a quem deveria servir.

Faltou à igreja sensibilidade para equilibrar o peso entre defesa de seus dogmas e os dramas pessoais envolvidos na estória, incluindo o rico de morte da menina ou o nascimento de crianças geradas num estupro. A igreja poderia ter procurado a família da criança para oferecer ajuda, poderia ter se abstido de comentar o caso, poderia até ter reprovado publicamente o ato do aborto, mas optou pelo rigor da excomunhão. Em lembrança à Oração de São Francisco de Assis, faltou à igreja consolar, compreender, perdoar, amar e dar sem pensar em receber.

E não venham dizer que a excomunhão foi um ato impensado arcebispo de Olinda e Recife, circunscrição onde ocorreu o episódio. O fato ecoou no Vaticano e lá recebeu apoio da cúpula católica, sob o argumento de que, apesar da interrupção da gravidez ser legal, os gêmeos teriam direito à vida.

Na repercussão do caso, predominou entre a opinião pública a reprovação ao ato da igreja. Ou seja, os dogmas católicos, e não somente relativos ao aborto, mas outros, como a condenação ao uso da camisinha, estão isolados da realidade social. A igreja prega na escuridão, defendendo conceitos que não são seguidos por seus fiéis nem mesmo parte considerável do clero, na surdina das casas paroquiais, dos mosteiros e conventos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Carta aberta aos gramáticos



Senhores gramáticos,

Não é querendo desmerecer a honrada profissão dos senhores, mas, por favor, não maltratem mais a nossa língua pátria. Chega de disseca-la, de esquarteja-la para que suas vísceras sejam expostas nas salas de aula ainda respingando sangue.

Chega de gestos brutos! Não conseguem ver que, como os estudiosos em anatomia, vocês retalham o que é belo para chegar ao desagradável, ao que não importa, àquilo que nunca deveria ser visto ou tocado?

Os mistérios da língua devem ser desvendados na sua superfície, a princípio na forma de olhares atentos, depois nos toques e na percepção dos cheiros exalados. Não nas suas tripas ou intestinos.

Pra que querer saber das orações, sujeitos, predicados e objetos? Pra que tantos por quês? Há intimidades que não devem ser questionadas, mas sim compreendidas nas palavras que não são ditas. E tais coisas, para serem perguntadas, se de fato houver necessidade, devem ser tratadas à meia voz, em breves sussurros, e num ambiente adequado – de preferência à meia luz. Jamais podem ser arrancadas brutal e publicamente, postas em livros ou reveladas sob o tom imperioso daqueles que se colocam diante do quadro-negro!

E pra que tratar a língua portuguesa com uma formalidade esdrúxula que beira a rispidez? Nada de “far-se-á”, “tê-la-ei” ou “contar-te-ei”. Não mais! Nossos verbos devem tocar sua orelha com a mesma maciez que os lençóis de seda no momento mais sublime.

Deixais que “beleza” seja apenas a qualidade do que é belo, e que “prazeroso” seja apenas aquilo que nos satisfaz. Pra que rotular se são adjetivo, substantivo ou qualquer outra classe? São o que são, e isso basta. Deixai-os livres para apenas ser.

Senhores gramáticos, aceitem um conselho de quem só quer ajudar: tomem lições com os poetas. Estes sim sabem como tratar a língua portuguesa. Tiram-na para dançar, oferecem flores e – o que é mais importante – tem um olhar sensível que os faz enxergar nela até os traços de beleza menos aparentes. Eles sim apreciam as formas que a língua portuguesa tem, sabem despi-la e desfruta-la.

Atenciosamente,

Flávio Herculano
Jornalista

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Bandeiras para explorar um novo mundo



Homem. Definitivamente, um ser espacial.
Seu mundo é um micro-mundo...
O mundo da sua casa, do seu bairro, do seu ambiente de trabalho.
Seu universo é a sua cidade.
Pequena ou grande, é lá que estão suas referências, geralmente de igual tamanho.
É de lá que ele extrai costumes. É lá onde ele forma-se!
E é também lá que ele perpetua seus ideais, entre homem iguais e entre seus descendentes.
Mas o homem poderia ser mais.
Sua cabeça é um universo infinitamente maior, sem espaços limitados ou fronteiras.
Lá, cabem todos os bites, pixels, polifonias e tons de cores. Cabem universos de sentidos e sensações.
Seja um desbravador.
Avance com sua Bandeira e ocupe este território inexplorado.
Janeiro de 2009

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

O brilho feminino da MPB em 2007 - resgate de texto



Os desavisados de plantão sempre teimam com um velho discurso, de que não há renovação na música brasileira ou, pior, que os medalhões da canção foram superados pelos corpos desnudos que vêm e vão, no remelexo do calipso e da axé músic. Desligando-se dos programas de auditório da TV e ajustando um pouco suas próprias antenas, você verá que a MPB continua emitindo seus sinais de criatividade, seja com os nomes consagrados, seja com a geração que está despontando.

E, no país das cantoras, são elas que melhor sintonizam o que anda acontecendo na música brasileira. Cada uma com seu estilo e seu timbre, as mulheres fizeram de 2007 um ano de bons projetos fonográficos.

Veterana, com 41 anos de carreira, Maria Bethânia continua com o mesmo brilho, mas agora com a liberdade de trabalhar numa gravadora menor, a Biscoito Fino, que abre mais espaço à criatividade. Ela investiu num projeto conceitual e lançou dois discos simultâneos, quase integralmente de canções inéditas. Com Mar de Sophia, Bethânia deu um mergulho profundo na temática das águas do mar e na densidade dos versos da poeta portuguesa Sophia de Melo Brayner. Com Pirata, se fez soar leve e artesanal, utilizando a água doce como viés criativo. Festejada, a fase se encerrou como uma triologia, em novembro, com o lançamento do disco Dentro do mar tem rio, ao vivo.

Elba Ramalho, com 28 anos de carreira, se mostrou mais arejada que nunca. Apostou na nova geração de compositores e realizou um dos melhores discos de sua carreira, Qual assunto mais lhe interessa, sintonizado nas composições de Lenine, Lula Queiroga, Chico César, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes.

Mas foram as novatas que deram o tom de reinvenção da MPB. Ha tempos não surgia alguém como Roberta Sá, que combina uma invejável leveza como intérprete, inclinação para a pesquisa e abertura com a nova geração de compositores e músicos. Participante do reality show global Fama, ela conquistou notoriedade mesmo foi com seu segundo CD, Que belo estranho dia pra se ter alegria, talvez o melhor álbum de 2007. Sambista nata, Roberta é o ícone da renovação deste ritmo, abraçado inicialmente pelos jovens cariocas freqüentadores dos bares da Lapa e popularizado Brasil afora pelos mais descolados. Se você ainda não conhece Roberta Sá, procure por ela.

Também da seara da Lapa emergiu Teresa Cristina, se comparada a Roberta Sá bem mais contida, a lá nova dama do samba. Ela foi reverenciada pela crítica em anos anteriores e, em 2007, conseguiu espaço numa grande gravadora (EMI Music), onde lançou Delicada.

Com a carreira em risco, por soar repetitiva e engessada já no segundo álbum, Maria Rita soube se reinventar em 2007. Ela também apostou no samba. Ficou mais espontânea, perdeu os ares de diva precoce e – o que foi vital – dissociou sua imagem da mãe, o ícone Elis Regina. Com o disco Samba Meu, Maria Rita se mostrou despretensiosa, unindo ótimos sambas (como O Homem Falou, de Gonzaguinha) a outros menos inspirados, mais próximos da seara do pagode. Para quem precisava descer do salto e revitalizar-se, longe da formação baixo-bateria-piano-violoncelo, a mistura soou positiva.

Abrigada na música pop, Vanessa da Mata – que foi ofuscada em sua estréia em disco por surgir junto a Maria Rita, em 2003 – também chegou ao terceiro álbum, a prova de fogo mercadológica de todo cantor. Em Sim, Vanessa provou que é possível ser popular fazendo boa música. Juntou reggaes, baladas, disco, carimbó e pop, soando muito bem e se confirmando como uma compositora eficiente.

Fecho com Fernanda Takai, vocalista do Pato Fu, que lançou seu primeiro disco solo no final de 2007, Onde brilhem os seus olhos, visitando a obra de Nara Leão. Com tom de voz semelhante ao da homenageada, não pareceu repetitiva. Redecorou as canções com arranjos mais joviais ou transformando completamente seus ritmos, conseguindo a proeza de não violentar a concepção original das músicas. Isto, só pra citar algumas cantoras da MPB industrial, de maior visibilidade. Pesquise, faça sua lista e descubra o muito que a música brasileira tem a oferecer.

Dezembro de 2007
Publicado em:
www.overmundo.com.br e www.ogirassol.com.br

Espelho



Em algum lugar, existe um espelho de mim. Por um dos grandes mistérios do mundo, ele não reflete minha imagem de hoje, mas a de um passado que já me parece secular - como que um retrato de Dorian Gray invertido.

Naquela imagem, enxergo além das tranças negras, além do bigode ralo e da pele morena que nunca me pertenceram. Ali, eu enxergo os sonhos, as curiosidades, questionamentos e descobertas que um dia vivi – ou que tive ânimo para achar que viveria.

No reflexo, tudo é novo, tudo são plenos horizontes. Tudo é vibrante. Esse era eu. Não as tranças, não o bigode ralo ou a pele morena. Eu, em essência, era este complexo de sentimentos.

Hoje, um pouco cansado, um pouco sem esperanças e vendo o horizonte cada vez mais estreito, me deparo diante daquele sorriso esboçado no espelho. Vejo isso e fico feliz.

Para Rafael Mussolini

Novembro de 2008
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www.overmundo.com.br

A feminina voz da arte



No princípio elas já eram adoradas. As “Rainhas do Rádio”, entre as décadas de 30 e 40, despertavam fervor. Linda Batista, Dircinha Batista, Marlene, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba e Ângela Maria, entre outras, se sucederam no posto de cantoras mais populares do país em meio a disputas acirradas de seus grupos de fãs. Ainda assim, quem conseguia arrastar o grande público eram os homens. Na chamada “Época de Ouro” da música popular brasileira, nomes como o de Francisco Alves, o "Rei da Voz"; e Orlando Silva, o "Cantor das Multidões" eram imbatíveis frente às intérpretes.

Desde estes primórdios criou-se o estigma de que mulher não vendia discos. Décadas se passaram assim, até a chegada de uma cantora exuberante, de vestidos brancos rodados, adornos africanos e cabelo revolto. A época: meados da década de 70. A personagem: Clara Nunes. O feito: bater recordes de vendagens, chegando a quinhentas mil cópias do álbum “Alvorecer” (1974) e abrindo espaço para outras sambistas, como Beth Carvalho e Alcione. Pouco depois uma baiana de interpretação teatral atingiria 1 milhão de cópias, do disco Álibi (1978), chegando a rivalizar o posto de número 1 da música brasileira com o “rei” Roberto Carlos.

O estigma estava quebrado. O Brasil se firmava como o país das cantoras. Cada uma com timbre único, cantando as belezas e as mazelas de seu país, mas, sobretudo, os prazeres e as dores de amar - de modo que nenhum homem poderia cantar igual. Gal, Simone, Maysa, Nana, Elba, Zizi, Elza, Joanna emprestavam voz, corpo e emoção às canções. Aos homens, coube adotar o papel de compositor-cantor; raras as vezes o de puro intérprete.

Através de seu canto, as mulheres personificaram a evolução comportamental, política e musical do país. Em especial, a recém adquirida liberdade de ser mulher.

Foram muito bem vindas Araci Cortes, que encarou de frente os preconceitos tornando-se a primeira estrela feminina da MPB; Nara Leão, musa de movimentos tão opostos quanto a Bossa Nova e o Tropicalismo; Rita Lee, personificação da irreverência do roqueira; Cássia Eller, que esfacelou os últimos tabus de sexo e comportamento no palco e na vida. Elis foi a voz da anistia aos exilados; Fafá foi o canto das “Diretas Já”.

Mulher 90
Aos poucos, a nova geração de cantoras foi cortando as raízes com o passado. Em relação aos temas, elas passaram a se mostram menos dispostas a rasgar o coração, como faziam as divas consagradas da MPB. Em vez de requisitar compositores masculinos, preferiram dar voz a composições próprias. Surgiu um novo som, mais contemporâneo e pop. Adriana Calcanhotto, Zélia Duncam, Ana Carolina e Vanessa da Mata são exemplos desta safra, que marca o final do século 20 e o início dos anos 2000. Marina Lima e Marisa Monte podem ser considerados os primeiros ícones desta geração.

Pós-pirataria
Com o crescimento da pirataria de CDs e DVDs, surge um novo ciclo na MPB. As vendas de discos declinam e o mercado fonográfico se enfraquece. Passa a valer mais cativar um púbico para shows e buscar a construção de uma carreira sólida que, propriamente, repetir fórmulas que garantam altas vendagens. O que fez surgir uma nova tendência, dando um novo tom à voz feminina.

Sem que o mercado determine quem será a “revelação do momento”, está surgindo uma enxurrada de novas cantoras. São donas de vozes bem afinadas, que, em geral, se destacam em barzinhos descolados e transferem o bom repertório de palco para o formado em CD.

São também jovens de bela estampa. Compositoras ou não, todas são bem dispostas a garimpar canções esquecidas, ao mesmo tempo em que se mostram antenadas com a nova safra de compositores. Em seus discos, convivem em harmonia canções de Dorival Caymmi, Paulo César Pinheiro, Lenine, Marcelo Camelo e Rodrigo Maranhão. Ao contrário da geração “Ana Carolina”, elas deram uma pausa no pop, primando mais por um resgate à tradição da música brasileira. A maioria adotou o ritmo nacional mais emblemático: o samba.

São tantas as novas cantoras que mal consegue-se acompanhar a velocidade em que são reveladas, ao público especializado ou às massas. Os primeiros nomes despontaram para além do circuito alternativo em 2007. É o caso de Roberta Sá, Mariana Aydar, Teresa Cristina e Mart’nália na seara do samba e de Céu e Ana Canãs, de influência pop. E não vou me alongar na lista para ficar apenas entre as que tiveram maior destaque.

Todas muito boas, sem dúvida. As que levantam a bandeira do samba fazem isso com muita propriedade, mas talvez com muita reverência ao passado. Com isso, se blindam de experimentar musicalmente. Assim, quem permanece livre, leve e solta, cantando samba e soltando seu vozeirão jazzístico é Elza Soares. Aos 70 anos, ela mostra que sabe inovar e dá um banho em qualquer novata. Fica a lição pras moças, que são tão aplicadas em seu ofício.

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As armas de um João



Num sertão de muitos joãos, havia mais um. Mais um João torturado pela pobreza, pela rispidez daquela terra e daquela gente. Uma gente bruta, que não tem quase nada e que o pouco que tem não valoriza. Nem a vida.

Por um motivo torpe, mataram um dos dois irmãos do João. Segundo a ordem sertaneja, ele tinha que honrar sua família com o sangue do novo inimigo, levando a mesma dor que sentia aos entes do algoz de seu irmão. Num ciclo de vinganças, uma rixa se firmava. Dali nasciam emboscadas, seqüências de fugas pelo mato e o temor de ser ou de fazer de um dos seus a próxima vítima daquela sina, que vez por outra tingia de vermelho a terra seca.

João não tinha muitos familiares. A bem da verdade, restava a ele resguardar com maior tino apenas sua própria vida e a do outro irmão que lhe restara. Logo ele, um homem pacato, um jovem simples do mato, teve que se afeiçoar às armas, fazendo-se delas eternas companheiras. Não restava a João outro destino, senão o de também ser um bruto.

Um dia, João encontrou uma bela e jovem Maria. Casou, teve filhos, batalhou, livrou-se da miséria, mas seu coração nunca se amansou. A constante ameaça de ser caça e de ter que se fazer caçador o perseguia, em meio ao casarão que construiu e à coleção de armas que pôde comprar.

O sangue inimigo derramado nunca aliviou a dor de perder tão injustamente o irmão, que era um homem popular na pequena cidade pela postura altiva e por sua bondade sem tamanho.
A família que João formara parecia não suprir tamanha perda. O negror do passado o fazia ignorar o conforto de agora. A necessidade de atormentar-se fazia com que João repelisse sua bela e amada Maria, a quem, por muitas vezes, tratava com a mesma rispidez dispensada aos seus inimigos. E ela se afastou para jamais voltar.

Passados os anos, já velho e sozinho, João se manteve atormentado. Quando não estava bebendo suas agonias, o tempo todo resmungava algo para si mesmo, acomodado em sua inseparável cadeira de balanço. Talvez remoesse baixinho sobre suas lembranças amargas, talvez repetisse algo sobre a necessidade de manter-se em guarda, ante uma rixa que esmaecia mas que, ainda, não tinha ainda definhado por completo.

João passou seus últimos anos fechado em si mesmo. Muito longe de sua Maria, longe até de seu outro irmão. Em sua cadeira de balanço, à calçada, viu a paisagem do sertão mudar, na esteira dos primeiros ares do progresso. Aos poucos, os joãos daquela cidade foram ganhando novas perspectivas, deixando de ser brutos e aprendendo a valorizar a vida.

Publicado em www.jornaldotocantins.com.br

Sua espera



Um espaço em branco. Um vazio. Um vácuo.
Como uma tela aguardando o carinho dos fios do pincel.
Para, nesse afago, ganhar cores e brilho.
Nesse afago, preencher-se, completar-se...
Nesse afago, tomar formas, feições e encontrar a própria identidade.
Sou eu, assim, a sua espera.

Janeiro de 2009
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Desconstrução do mundo



Pensando bem, o mundo é belo.

Poderia ser mais, de uma beleza sem domínios, que corresse campos, escalasse montanhas e cruzasse rios, até chegar extasiada onde quebram as ondas do mar.

Num último fôlego, esparramando-se onde o horizonte não alcança, adentraria pelas águas e repousaria sobre corais... num caminho livre, a plenos pulmões, coroado por uma chegada entorpecida.O mundo é belo sim. E poderia ser mais.

Pena haver tanto concreto, asfalto e paredes, interrompendo a passagem de sua formosura. Não sei quem lançou a idéia que desconstruindo o mundo ele se tornaria um lugar melhor.

Dezembro de 2008
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O Legislativo sob sombras




De todas as instituições que sustentam a sociedade brasileira e seus indivíduos, sobre uma paira o descrédito quase que completo: a classe política. Nem precisa de pesquisa pra comprovar isso. Mas, aos que adoram números e estatísticas, ai vai: os políticos estão na lanterna das entidades consideradas confiáveis, sendo aprovados por somente 7% das pessoas, segundo pesquisa recente publicada pela Folha de São Paulo.

Em seu íntimo, 93 entre cada 100 cidadãos brasileiros desejam dar aquela tomatada num político. Melhor ainda se for num membro do Legislativo, poder que é visto por muitos como inerte. Não apenas por suas próprias limitações, afinal os legisladores se vêem sob a amarra de não poderem criar leis instituindo programas ou ações que onerem os cofres do Executivo - ou seja, no Brasil, em situação inversa aos países de democracia mais sólida, não é o Legislativo quem elabora a maioria das leis, e sim o próprio Executivo, adotando mecanismos diretos ou indiretos, incluindo as tão corriqueiras medidas provisórias.

Diante dessa limitação (de não criar leis que mexam com o orçamento), a maioria dos parlamentares se restringe a produzir projetos de lei socialmente inúteis, que condecoram personalidades com títulos de cidadania ou que dão nome a obras públicas. Na melhor das hipóteses, senadores e deputados se comportam como simples vereadores, buscando recursos do orçamento da União e dos estados para pequenas obras nos municípios que formam suas bases eleitorais – restringindo sua atuação aos períodos de apresentação das emendas. Assim, ao invés de discutir as grandes questões da nação ou de seus estados, parte significativa dos parlamentares se limita a propor a construção de praças, ciclovias ou obras similares, que agradem aos prefeitos aliados e assegurem seu apoio eleitoral.

Mas, logicamente, o poder Legislativo poderia fazer muito mais. Fiscalizar a aplicação do orçamento é seu papel essencial, que não é exercido porque um percentual significativo dos legisladores prefere ficar à sombra do Executivo, à cata de cargos públicos e outros benefícios pessoais. A cada projeto de lei polêmico que o Executivo elabora e envia para votação, haja negociatas com deputados e senadores – e também vereadores, no caso dos municípios.

Em sua atuação mais oficiosa o parlamentar, quando faz parte da bancada de oposição, critica os atos políticos do Executivo, mas muitas vezes às cegas, sem grande interesse ou embasamento, só para cumprir uma posição institucional. Assim, movem os colegas da base aliada a contra-argumentar, partindo para a defesa do Executivo. Os holofotes brilham para todos, e todos eles ficam felizes. Mas não o cidadão.

Esse mesmo cidadão, que mantêm com seus impostos os poderes públicos, não tem a quem recorrer nem a quem direcionar sua indignação. Afinal, o Legislativo é um poder coletivo, em nível federal formado por 513 deputados e 81 senadores. Não há a quem atribuir diretamente os maus atos, a não ser a um plenário ou a um símbolo – o prédio do Congresso, por exemplo. Ou seja, protestar é xingar paredes.

Alvo de indignação que generaliza o Poder, cada legislador se veste sob o falso manto da moralidade. Nunca ele é o culpado, só o vizinho de bancada ou a parcela podre de um parlamento onde ele jamais esteve inserido. Corporativo, não julga publicamente seu colega para um dia também não ser julgado.

Assim sendo, que nos protejam os suplicys e gabeiras.

Novembro de 2007
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Madonna: ícone em construção permanente



Datas “redondas” sempre mexem com a gente. Quando viramos cada década de vida, é natural correr pra o espelho, pra ver a profundidade das rugas no rosto e a saliência dos pneuzinhos na cintura. Também analisamos o que foi feito de nossa vida e o que ainda nos falta realizar. Huuum, haja frustração! Mas prossigamos. Este mês um ícone da cultura Pop mundial vira a folhinha e entra em sua quinta década de vida. Se a loira Madonna decidir, por vaidade feminina, ignorar a passagem de seu meio século de nascimento, ela terá outra grande data a festejar: os 25 anos em que permanece no topo do showbussines. Este sim, um feito que merece reflexões.

Madonna não é uma grande cantora, uma exímia dançarina nem mesmo uma mulher de beleza excepcional, mas não é exagero dizer que, contra tudo isto, ela conseguiu construir uma carreira tão sólida quanto alguns dos maiores ícones da música mundial, como Michael Jackson e Elvis Presley.

Acima de tudo, Madonna é um ícone, uma imagem em permanente adaptação. Sempre renovada, atendendo ao gosto do público de cada época. É por isso que ela permanece no topo. Sua imagem é seu grande espetáculo, tão grande quanto sua própria música.

No inconsciente coletivo, Madonna é lembrada mais por suas mil faces, ou um mil fases – como preferir -, e menos por suas canções. Aí, a imagem de Madonna que você guarda denuncia a sua idade.

Pode ser a imagem do início de carreira, rival de Cindy Lauper, com figurino colorido e cabelo loiríssimo e repicado. Pode ser a material girl, vestida de Marilyn Monroe. A Madonna profana, de cabelos negros, dançando diante de cruzes em chamas. Pode ser a mulher provocativa, cantando sobre uma cama, vestida em sutiã de formato de cone. A erótica e dominadora. Ou a atual, comedida, mas que preserva a sensualidade. Todas, imagens bem construídas e preservadas em videoclipes, a mídia que surgiu e se desenvolveu junto com Madonna. A mídia que fez ela crescer.

Sua própria música, Madonna também trata como “imagem”. Cada um dos seus discos é um registro de época, com arranjos adaptados à estética sonora do momento em que foi lançado. Isso, mais uma forma encontrada para manter-se sempre atual, em sintonia com o público.

Seu álbum atual, Hard Candy, é a maior prova da adaptação de Madonna aos sons de cada época. É o seu disco mais “fabricado”, o menos original. As músicas flertam diretamente com o rap e o eletrônico pasteurizados. Levando a assinatura de Timbaland, o produtor musical do momento, Hard Candy não tem a identidade de Madonna. Bem que poderia ser um disco de Nelly Furtado, Beyoncé ou qualquer outra cantora pós-adolescente do momento.

O fato é que Madonna conduz a carreira como quem toca uma empresa e usa todos os recursos para manter-se em evidência. E , o mais impressionante, alcança sua meta sem comprometer a qualidade do trabalho ou soar como um simples produto de mídia – claro, desconsiderando equívocos como Hard Candy.


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A classe média, a mídia e seus umbigos




A classe média brasileira só olha para o próprio umbigo. Fechada em suas salas de jantar, ou mesmo durante seus passeios ao shopping, está sempre ligada na fatura do cartão de crédito, na taxa de juros do CDC, no aumento do plano de saúde... Em seus momentos de maior drama, volta-se aos inconvenientes do dia-a-dia em sociedade, inconvenientes que afligem sua família ou que apenas pairam sobre suas cabeças, como uma ameaça permanente.

Nesse caso, haja reclamação quanto à violência urbana, trânsito, inflação e por aí segue. Dramas que estão longe do campo das ideologias ou do existencialismo. Afinal, na selva cotidiana, somos obrigados a nos voltar para as preocupações mais primitivas: a busca do alimento (leia-se "grana") e a nossa própria sobrevivência. Natural que seja assim.

O curioso é que a mídia toma para si as dores dessa classe média, focando-se nos problemas de uma única parcela da sociedade. Com isso, esquece que existem outros dramas, até maiores, que por esta própria dimensão tornaram-se banais. De tão freqüentes, de tão presentes, não são mais notícia. De modo contraditório, são problemas que, por serem grandes, tornaram-se invisíveis.

Outra leitura
Aí, me refiro aos problemas que afligem os pobres e miseráveis. Tráfico, pequenas chacinas, truculência policial, fome. Problemas que só ganham visibilidade quando descem o morro e, justamente, se chocam com a classe média, afetando diretamente algumas famílias e pairando sobre a cabeça de outras.

Quanto à pauta da mídia, podemos perceber que, exceto pelos escândalos de corrupção, ela está sempre voltada para a classe média. É o aniversário de 10 anos de queda do edifício Palace II, o assassinato de jovens da classe média por policiais despreparados, a morte de Isabella Nardoni, o caos aéreo e, novamente, segue a lista.

Sob o olhar da classe média, podemos ter outra leitura destes fatos: a insegurança para investir em um bom apartamento, mesmo que ele esteja na Barra da Tijuca (Palace II); a ameaça que ronda os nossos ambientes, vestida em farda do Estado (violência policial); a desestruturação da família, que é o pilar de apoio a todo cidadão (caso Isabella); e a insegurança que compromete o nosso direito de ir e vir (caos aéreo).

Não há espaço para reações
São dramas que não causariam a mesma comoção caso o caos tomasse conta de rodoviárias país afora; caso Isabella fosse negra e pobre; caso mostrassem policiais subindo o morro, torturando e matando; ou se divulgassem cenas dos barracos que são soterrados por encostas e que desabam em dias de chuva. Nestes casos, as classes A e B, público-alvo dos maiores anunciantes da TV, não se identificariam.

Ao chocar-se com os fatos que pautam a mídia, o brasileiro médio não apenas lamenta pelos personagens do drama em questão. Ele se vê na possibilidade de um dia também ser vítima. Em seu medo, sente-se indignado contra as autoridades, que não tomam qualquer providência para evitar que estas tragédias do cotidiano se alastrem até ele e sua família. Mas engole sua indignação, assistindo passivamente à notícia na TV. Afinal, em nossa selva cotidiana, não há espaço para grandes reações, mas apenas para batalhar pelo pão e rezar pela própria vida.

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